Capítulo 28 – Um presente mortal

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Trilha sonora: ‘Parabéns pra você’ – Canta pra mim?

 

Feliz aniversário pra mim. Não esperava comemorar mais um ano de vida desse jeito. Praticamente só. Desta vez o martírio da separação definitiva veio inteiro no final de semana. Preparei-me previamente comprando quatro caixas de lençinhos de papel e vendo todos os filmes de drama que estavam disponíveis no Netflix só pra convencer-me de que a história dos outros podia ser pior que a minha. Não poderia. Minha vida era péssima e chorei até meus olhos ficarem como uvas passas. Não quero atazanar ninguém com minhas preocupações infantis, meus sentimentos de menina, mas seria tão fácil desfrutar de uma quarta recaída – uma mensagem de celular e pronto. É tão fácil que pedi para Dani esconder o telefone de mim.

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– Feliz Aniversário!

– Que horas são, mãe?

– Seis da manhã. O horário que você nasceu.

– Mãe eu estou de férias, me acorda às seis da tarde.

– Eu não posso que tenho de trabalhar. Levanta! Sua irmã, o Marcos, o seu pai. Tá todo mundo ai pra tomar café com você.

– Eles podiam ter vindo mais tarde.

– Nós, adultos, não temos férias em julho.

 

“Não quero atazanar ninguém com minhas preocupações infantis, meus sentimentos de menina, mas seria tão fácil desfrutar de uma quarta recaída – uma mensagem de celular e pronto”

 

– Pera… Você falou que meu pai está aqui. A Ivonne também tá ai?

– Hum! Tá sim. Tô me segurando pra não adoçar o café dela com cianureto.

Eu rir e me levantei da cama.

– Faço questão de ser eu a temperar essa xícara! Eu me visto em um segundo. Já, já tô lá.

– Acorda a Dani.

O café tava ótimo, era quase só café mesmo. Tinha pão, ovo, uma mortadela e brigadeiro. Senti falta de um bolinho. Envelhecer é muito ruim. Ao invés de trinta e duas bonecas e mais um monte de vestidos e sapatos, eu ganhei do meu pai uma edição revisada de ‘Irmãos Karamazov,’ de Dostoievski – provavelmente um presente que ele está repassando. Só isso. Nem o presente da tia Rosa eu ganhei esse ano.

 

“O evento em si tinha um clima depressivo. Conversamos muito pouco até pela composição do grupo não ajudar”

 

Não bastasse meu estado e a falta de “lembrancinhas”, o evento em si tinha um clima depressivo. Conversamos muito pouco até pela composição do grupo não ajudar. O Marcos parecia ter medo dos dois sogros, meu pai e meu padrasto. Era a primeira vez que ele ia a minha casa. Ivonne também, acho que só conhecia o endereço da porta para fora, e, para evitar renascer discussões antigas, também se calou e pouco comeu.

Minha irmã e meu pai, por sua vez, pareciam extremamente confortáveis com a situação. Ela falava pelos cotovelos sobre como o casamento e ele chegava até a fazer piadas. Ao ver a Dani ele disse: “Essa também é minha filha? Não lembrava”. Revirei os olhos pela extrema falta de tato de ironizar a própria ausência como figura paterna. Só queria que todos fossem embora. E fui atendida.

Às sete e meia eu já tava sozinha. Sem inspiração pra desenhar ou tocar violão, sem a mínima pretensão de começar o ‘Irmãos Karamazov’ e com as mãos coçando de tanta vontade de ligar pro Guilherme. Eu teria pedido o celular para a Dani se a V não tivesse aparecido lá em casa minutos depois carregando um sorriso de fortaleza.

– Feliz Aniversááário!

– Brigada.

– Ih! Que cara de peixe morto é essa? Vamos se animar! Toma o seu presente.

– Isso é um cartão presente. Eu sei que você detesta cartão presente, mas leia o nome da loja.

– ‘Pimenta Picante’.

– É um sex shop! Eu não tinha como não deixar você participar da escolha. Mas fosse eu comprando, seria a calcinha comestível.

– Elas não têm a menor graça. – gritou a Dani do seu quarto.

 

“Havia uma parede inteira de vaginas vibratórias. Eu e a V acabamos nos escondendo nossa castidade na seção de fantasias, a única em que nos sentimos minimamente confortáveis.”

 

Com o perdão do trocadilho, aquilo me pareceu muito excitante. Aproveitamos que a Dani tinha consulta então fomos no mesmo ônibus que ela. Após saber que tudo ia bem, muito bem, com o bebê – a não ser sua mania de esconder o próprio sexo e nos fazer ainda mais ansiosas –, fomos as três até o Pimenta Picante. A loja por fora era muito discreta, mas ao entrar…

Devo confessar que me senti um pouco envergonhada. Havia uma parede inteira de vaginas vibratórias. Eu e a V acabamos nos escondendo nossa castidade na seção de fantasias, a única em que nos sentimos minimamente confortáveis. Dani, porém, perguntava de tudo com uma propriedade espantosa para alguém de tanta fé. A única coisa que conseguimos comprar com 100 reais foi uma fantasia rendada de enfermeira que eu, certamente, jamais irei usar. De mais a mais, eu não teria onde esconder um pênis de borracha do tamanho do meu braço.

Depois, nós fomos ao shopping. Eu e a Dani fomos para a fila do cinema para comprar os ingressos do filme e V foi rodopiar pelas lojas. Enquanto éramos atendidas, eu comentei vagamente com ela que o menino que estava no caixa ao lado era bonito. Como em How I Met You Mother, ela simplesmente bateu no ombro do rapaz e disse: “Oi! Você já conhece a Sol?” e saiu. Me deixou sozinha, com a bexiga apertada, perante um garoto que poderia ser muito bem um tarado-pisicopata.

 

“Me deixou sozinha, com a bexiga apertada, perante um garoto que poderia ser muito bem um tarado-pisicopata.”

 

– Desculpa. É que a minha amiga é um pouco perturbada.

– Não, imagina. Mas eu te conheço?

– Não, infelizmente nunca fomos apresentados. – sorri e joguei meu pouco cabelo pro lado – Meu nome é Soraya.

– O meu é Guilherme.

Sabe o que é fanar? Da mulher fatal à depressiva descabelada em um segundo. Em um universo de infinitas possibilidades de nomes ele tinha que ter exatamente esse? Podia ser Rubervaldson, mas Guilherme? Justo Guilherme? Nem pra ter mentido.

 

“Em um universo de infinitas possibilidades de nomes ele tinha que ter exatamente esse? Podia ser Rubervaldson, mas Guilherme? Justo Guilherme?”

 

– Olha você  me desculpa, mas não vai dar! Você é um bonito e… Mas… Desculpa!

Saí zonza. Respirei fuundo no banheiro para que eu não chorasse. À custo que me reestabeleci, mas esperava que aquele fosse o meu último encontro com aquele nome na minha vida. Mal sabia que eu não ia só me encontrar com o nome, mas com o principal dono dele em poucas horas.

Depois do filme – muito ruim, por sinal – fui pro Maracangalha com os meus amigos. Era dia de happy hour. Hoje demorou pouco pra arrumar tudo por que tinha bastante gente pra ajudar. Nós fizemos o show de sempre: Caetano, Cássia Eller e o final coroado com nossas músicas.

Bem na hora em que eu estava dando o meu máximo, cantando o “e onde tu estiver eu estarei com você…”, o Guilherme entrou no bar. Acompanhado. Acompanhado da Débora. DA DÉBORA. Na hora que os vi minha garganta se trancou de cadeado. Ela estava deslumbrante, muito mais do que eu jamais seria. Ela estava deslumbrante de jeans e camiseta velha. Tive vontade de chorar de vergonha.

 

“Ela estava deslumbrante, muito mais do que eu jamais seria. Ela estava deslumbrante de jeans e camiseta velha. Tive vontade de chorar de vergonha.”

 

O Salsicha, que faz a segunda voz, ficou me olhando preocupado enquanto tentava achar o tom em que eu estava para seguir adiante – e ele estava quase conseguindo. A cara do Pedro enquanto secava os copos atrás do balcão teria sido cômica, não fosse a mesma cara que eu fazia. O José, nosso gerente, ficou me fazendo sinais, mandando voltar.

Não consegui. Sentei no amplificador. Calei a boca e quase comecei a chorar ali. Esse era o presente que eu merecia? Não. Não era. O Guilherme sorriu para mim. Sorriu de mim. A minha surpresa, a minha vergonha, as minhas lágrimas – tudo foi se transformando em ódio. Uma vontade de fazer o mal, de me vingar da felicidade alheia. Eu me levantei e assumi a voz mais malignamente sedutora que eu podia fazer.  Subi a minha saia até o máximo que eu pude e recuperei o controle.

– Me levantei e gargalhei. Agora eu é que não quero mais te ver. Já não ligo mais pra você. Au revoir, baby, namastê.

Me virei  e beijei o Salsicha.